Thursday, June 14, 2007

estas algumas horas




1

recordaremos estas algumas horas, o seu intacto
celofane. dentro
com inquietação nos apercebemos da sapatilha azul,
e as figuras cromadas da simetria: um tigre
a dilacerara, não fora o estridente apito
dos parafusos. «foolish things». quantas horas
escolhendo os fósforos, a marca
secreta das conservas, e estas imagens
igualmente fúteis, eis como
um osso curva
o teu choro no meio das gruas,
os longos alicates, e em cima da mesa
a luz era clara, eis a marca, o teu
uivo.


2

o mais ligeiro é o gnomo que pinta acessos
de ironia no tapume. algumas estas horas
o visitaremos abrindo
rapidamente a caixa onde o sabão
nos esteve atraiçoando.
e ainda as impressões digitais espalhadas na mesa
não teriam permitido reconhecê-lo; tanto
o pavor nos inclina os ramos mais altos,
perturbando a passagem dos navios.

3

algumas estas horas os resultados surgem
a meio da mesa, breves pastilhas brancas
que envenenam os teus
carinhosos insectos.
foi então que o amei? estes ligeiros
aeroplanos,
as naus,
o azul hipopótimo,
estas coisas incolores abrem ouvidos
na arrogância dos sinos.
e estes lugares sem água, quem dentro
da silenciosa sinagoga
deixaria de escutá-los?

4


longas essas algumas horas telescópicas quando
a limonada empalidece nos vastos balcões abertos
sobre a nossa impaciência, seguramos
com alguma razão os telefones
intactos da areia,
derramando no tapete estridentes migalhas.
de petrópolis, alguma esta hora nos trará
o celofane branco,
a gelatina,
o sopro.
deitaremos o corpo nas esquinas cromadas, respirando
a desolação dos laços, os estreitos
canais do ciclone, ou será
que me iludiu o seu abismo?
estas garrafas de celulóide e lágrimas, quem
nos virá dar em troca os desejados
pesadelos? algumas estas horas
estamos sentados no azebre com uma turquês
em cada mão, e os telefones luminosos.
os nossos filhos crescem
com barbatanas, olhos verdes, sensações de imortalidade:
será possível entendê-los? ou foi excessivo
o consumo dos aromas, das vistas sobre o lume,
das esplanadas quentes ao lado do mar?
quem
de tão cerca, nos visitará nas estas
algumas horas de sofrimento ter-mi-nal? e os
cromos implacáveis, a colecção de passaportes?
o daguerreótipo das miniaturas?
algumas horas estas alongam-se nos passeios
e nos muros, ouvindo ao telefone
o consolo de muitas aves.
«não! não é possível! veja: esta
limonada transparente, dir-se-ia água!»

5

a conclusão parece próxima, mas
poderá o gnomo recusá-la? estas questões
sejam indevidamente as douradas vidraças
do envelhecer. como evitar
o que recordaremos, estas algumas horas?
and yet
these foolish things
remind me of you
tu que pousas os meus olhos e as minhas mág
oas
e estes embrulhos transparentes, de ligeiras
asas na sapatilha azul.
ó que estas algumas horas sentadas no choro
não quebrem a amurada das amáveis
chávenas!
assim as recordaremos, e o celofane amarrotado.



(António Franco Alexandre)

Monday, June 11, 2007

adeus





Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
(Eugénio de Andrade)

Wednesday, June 6, 2007

três andares e cave


No terceiro andar moravam oito estudantes pobres.
No segundo as cinco costureiras com seus dois cães.
No primeiro os proprietários com a sua enteada.
Na cave, os cabazes, os tonéis e as ratazanas.
Os três andares serviam-se da mesma escada.
Os ratos subiam directamente pela parede.
Quando, à tardinha, passava o comboio, as ratazanas
saíam pela chaminé e iam para o telhado, olhando
o céu, as nuvens, as grades dos jardins,
as luzes dos restaurantes, enquanto a costureira mais velha
fechava as persianas, com a boca cheia de alfinetes.

Samos, Setembro 1969
Maio 1970



(Giannis Ritsos)