Thursday, August 23, 2007

Certidão de Nascimento


Tão regaço estas arcadas
Tão de brinquedo os eléctricos
Vejo a cidade parada
no ano de vinte e sete
Dela por vezes me evado
mas sempre a ela regresso
Bem sei eu que não desato
o cordão com que me aperta
Vejo seus gestos de grávida
medidos cautos imersos
nessa jovem gravidade
que só grávidas conhecem
Que frescor de madrugada
no terror com que me espera
Mães têm sempre a idade
que em sonho os filhos decretam
Recordo melhor a data
Até mesmo a atmosfera
É o dia vinte e quatro
de um mês a tremer de febre
com armas grades e o rasto
de um sangue que nunca seca
Só seis decénios passaram
rápidos como seis séculos
Tão pouco Mas nelas cabem
cidade arcadas eléctricos
nesta imensa claridade
irmã gémea do mistério
[David Mourão-Ferreira]

Tuesday, July 31, 2007

todas



Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)


[Álvaro de Campos]



Thursday, June 14, 2007

estas algumas horas




1

recordaremos estas algumas horas, o seu intacto
celofane. dentro
com inquietação nos apercebemos da sapatilha azul,
e as figuras cromadas da simetria: um tigre
a dilacerara, não fora o estridente apito
dos parafusos. «foolish things». quantas horas
escolhendo os fósforos, a marca
secreta das conservas, e estas imagens
igualmente fúteis, eis como
um osso curva
o teu choro no meio das gruas,
os longos alicates, e em cima da mesa
a luz era clara, eis a marca, o teu
uivo.


2

o mais ligeiro é o gnomo que pinta acessos
de ironia no tapume. algumas estas horas
o visitaremos abrindo
rapidamente a caixa onde o sabão
nos esteve atraiçoando.
e ainda as impressões digitais espalhadas na mesa
não teriam permitido reconhecê-lo; tanto
o pavor nos inclina os ramos mais altos,
perturbando a passagem dos navios.

3

algumas estas horas os resultados surgem
a meio da mesa, breves pastilhas brancas
que envenenam os teus
carinhosos insectos.
foi então que o amei? estes ligeiros
aeroplanos,
as naus,
o azul hipopótimo,
estas coisas incolores abrem ouvidos
na arrogância dos sinos.
e estes lugares sem água, quem dentro
da silenciosa sinagoga
deixaria de escutá-los?

4


longas essas algumas horas telescópicas quando
a limonada empalidece nos vastos balcões abertos
sobre a nossa impaciência, seguramos
com alguma razão os telefones
intactos da areia,
derramando no tapete estridentes migalhas.
de petrópolis, alguma esta hora nos trará
o celofane branco,
a gelatina,
o sopro.
deitaremos o corpo nas esquinas cromadas, respirando
a desolação dos laços, os estreitos
canais do ciclone, ou será
que me iludiu o seu abismo?
estas garrafas de celulóide e lágrimas, quem
nos virá dar em troca os desejados
pesadelos? algumas estas horas
estamos sentados no azebre com uma turquês
em cada mão, e os telefones luminosos.
os nossos filhos crescem
com barbatanas, olhos verdes, sensações de imortalidade:
será possível entendê-los? ou foi excessivo
o consumo dos aromas, das vistas sobre o lume,
das esplanadas quentes ao lado do mar?
quem
de tão cerca, nos visitará nas estas
algumas horas de sofrimento ter-mi-nal? e os
cromos implacáveis, a colecção de passaportes?
o daguerreótipo das miniaturas?
algumas horas estas alongam-se nos passeios
e nos muros, ouvindo ao telefone
o consolo de muitas aves.
«não! não é possível! veja: esta
limonada transparente, dir-se-ia água!»

5

a conclusão parece próxima, mas
poderá o gnomo recusá-la? estas questões
sejam indevidamente as douradas vidraças
do envelhecer. como evitar
o que recordaremos, estas algumas horas?
and yet
these foolish things
remind me of you
tu que pousas os meus olhos e as minhas mág
oas
e estes embrulhos transparentes, de ligeiras
asas na sapatilha azul.
ó que estas algumas horas sentadas no choro
não quebrem a amurada das amáveis
chávenas!
assim as recordaremos, e o celofane amarrotado.



(António Franco Alexandre)

Monday, June 11, 2007

adeus





Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
(Eugénio de Andrade)

Wednesday, June 6, 2007

três andares e cave


No terceiro andar moravam oito estudantes pobres.
No segundo as cinco costureiras com seus dois cães.
No primeiro os proprietários com a sua enteada.
Na cave, os cabazes, os tonéis e as ratazanas.
Os três andares serviam-se da mesma escada.
Os ratos subiam directamente pela parede.
Quando, à tardinha, passava o comboio, as ratazanas
saíam pela chaminé e iam para o telhado, olhando
o céu, as nuvens, as grades dos jardins,
as luzes dos restaurantes, enquanto a costureira mais velha
fechava as persianas, com a boca cheia de alfinetes.

Samos, Setembro 1969
Maio 1970



(Giannis Ritsos)

Tuesday, May 29, 2007

já vi matar um homem





Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome


(José Tolentino Mendonça)

Thursday, May 24, 2007

DO NOT GO GENTLE INTO THAT GOOD NIGHT




Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.
Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.


(Dylan Thomas)